“Você não
pode blasfemar contra Deus”[1]. Eis uma afirmativa que exige reflexão. O que viria
a ser de fato blasfêmia contra Deus? Falar mal de Deus? Discordar de Deus? Duvidar de sua
existência seria o mesmo que blasfemar? Ou blasfêmia é duvidar dos atributos de
Deus?
Elementarmente
o que ou quem é Deus?
Ora, eis uma pergunta que pode ser (e foi) respondida de várias maneiras (do
ponto de vista judaico-cristão pode-se afirmar que é um ser pessoal dotado de
alguns atributos, dentre eles: justiça, santidade, bondade, etc.). Mas é
possível definir com exatidão científica a natureza de Deus? É possível
estabelecer uma relação (blasfêmia) do natural (humanidade) com o sobrenatural
(Deus)?
I. (IM)POSSIBILIDADE DO ESTUDO TEOLÓGICO
Teologia
aqui é entendida como todo tratado, ou comentário sobre Deus. Portanto, qualquer ser que conceitue ou diga quem é
Deus, está fazendo teologia. Nesse sentido definimos ao menos quatro
possíveis[2]
níveis conceituais, em ordem regressiva, de quem realiza teologia:
4º. Nível Popular: o conceito que a pessoa faz de “quem é Deus”
baseado em sua tradição religiosa, experiências pessoais, imaginação e no que
absorvem do 3º. nível.
3º. Nível dos “Teólogos”: o conceito formado pelos estudiosos,
geralmente líderes eclesiásticos e sacerdotes, pessoas que se dedicam à
teologia e buscam interpretar as Sagradas Escrituras (a Bíblia), com a
expectativa de compreenderem (em sua maioria) o conceito formado pelo 2º.
nível.
2º. Nível dos Profetas e Apóstolos: conceito formulado por
aqueles que tiveram uma experiência com Deus, a quem Deus se revelou, portanto
o nível máximo entre seres humanos.
1º. Nível Divino: se trata da auto revelação de Deus. A atitude
do próprio Deus em se revelar, conforme descrito pelo 2º. nível.
De
posse das definições acima faremos uso do 3º. nível pelos seguintes motivos: o
1º. nível funde-se ao 2º., pois só o conhecemos à partir dele, portanto não há
como saber se realmente Deus se manifestou, pois o que temos de concreto é o
testemunho do 2º. nível acerca desta manifestação; o 4º. nível é relevante e
vasto, mas fundamenta-se fortemente no testemunho do 3º. Nível; então o campo
teológico deste artigo estará restrito entre o 2º. e o 3º. nível, o que ainda
constitui-se numa amplitude conceitual enorme. (Para maior profundidade do tema
poder-se-ia estudar, por exemplo, as definições teológicas do Apóstolo Paulo
conforme a visão do teólogo fulano; seriam definições mais específicas, e mesmo
assim consistiria num trabalho monumental, pois há vários escritos do apóstolo,
várias fases de sua teologia, públicos diferentes, contextos diferentes, etc.).
Aonde
se quer chegar com esta longa introdução? Basicamente a tarefa teológica é inconcebível ou superficial. Inconcebível,
pois ninguém conseguiria levar a cabo investigação tão minuciosa, portanto,
sempre, por mais que se dediquem os teólogos sempre terão ponto de vista
unilateral, pois nunca dominarão tudo o que o 2º. nível pensava sobre Deus (nem
eles mesmos dominavam!). E superficial, pois se intentarem elaborar um
conhecimento tão amplo, mesmo lançando mão de sínteses e estudos mais profundos
(elaborados por terceiros), estarão fadados à superficialidade, aproximando-se
ao 4º. nível.
Depara-se
no primeiro obstáculo: como alguém pode afirmar que isto ou aquilo é “blasfêmia
contra Deus”, se nem ao menos pode-se
conceituar com certa “unanimidade” quem é Deus?
II. A FICÇÃO DO ESTUDO TEOLÓGICO
Vamos
dar uma chance à teologia, e pressupor que não importa se o conceito teológico é
verdadeiro ou falso (uma das categorias de toda ciência é a comprovação do que
é verdadeiro e a refutação do falso), mas que o propósito da teologia seja
apenas exprimir “opiniões” sobre Deus, mais especificamente compreender os
conceitos formulados pelo 2º. nível, logo toda
teologia é apenas uma obra de ficção.
Como
a fé não pode ser pesquisada (está além da razão), o objeto da teologia não
pode mais ser definido como “o estudo de (sobre) Deus”, mas, com maior
exatidão, teologia é o estudo sobre as
experiências e opiniões religiosas sobre Deus. E para não haver nenhum
equívoco, obviamente, as únicas opiniões que serão levadas em consideração são
de pessoas religiosas, ou seja, que tem algo a dizer sobre Deus (não interessa
à história, por exemplo, a opinião, ou a teologia de Judas Iscariotes!).
Neste
ínterim, a teologia passa a ser um fenômeno social, no qual o ser humano visa
dar sentido (razão) à sua fé, e isto com base na razão que outros deram à sua
fé. Portanto toda teologia terá sempre
uma continuidade histórica.
Emitir
uma opinião sobre outra opinião, por essa frivolidade intrínseca à tarefa,
talvez, que alguns afirmam que “religião (teologia) não se discute”. O que dará
maior respaldo a alguma teologia? Ser expressa por teólogos profissionais, por
pessoas influentes, por instituições poderosas, repetida por séculos (daí a
luta das igrejas cristãs em defenderem sua apostolicidade histórica!) ou ser
confirmada pela experiência pessoal? Na verdade a teologia é formada pelo conjunto desses fatores sociais, ora se
entrelaçando, ora se opondo.
Elevando
a teologia ao status de ficção científica ainda resta um dilema: alguém pode
blasfemar realmente de Deus?
Ou esse julgamento está unicamente na mente de quem julga?
III. COMO BLASFEMAR CONTRA DEUS
Considerando
os conceitos teológicos dignos de atenção (e de fato o são, pois, do ponto de
vista científico, influenciam bilhões de vidas, independentes de serem
verdadeiros ou não), é possível blasfemar contra Deus? A resposta é paradoxal:
sim e não.
Não
é possível considerando-se que quando alguém expressa opinião contrária ao
conceito “de Deus” formulado por outrem, não
está necessariamente blasfemando contra (seu) Deus, e sim contra a opinião
teológica, ou seja, o conceito de Deus formulado pela outra (ou por ela mesma).
No caso de um ateu, qualquer opinião dele sobre Deus, do seu ponto de vista,
não é blasfêmia, pois para ele Deus simplesmente não existe. E se forem
religiosos de tradições (teologias) diferentes, para aquele que está sendo
julgado, na verdade, não se refere a uma blasfêmia, mas uma tentativa de impor
sua teologia sobre quem o julga, pois tem opinião divergente sobre o conceito
de Deus.
A
possibilidade de se blasfemar contra Deus se apresenta de duas formas:
primeiro, do ponto de vista de quem julga, considera-se uma blasfêmia ouvir uma
opinião contrária à sua, no que tange ao conceito de Deus (seja de outro
religioso ou de um ateu); e em segundo lugar, e mais interessante, quando a
própria pessoa se condena, ao blasfemar contra Deus.
A auto condenação é um fenômeno atraente,
pois pode revelar um movimento no sentido de reflexão e desenvolvimento
teológico. Não há desenvolvimento algum quando alguém meramente se condena
por aquilo que considera ser blasfêmia baseado em conceitos estáticos
(geralmente predefinidos pela tradição religiosa). O avanço está na capacidade que o indivíduo demonstra ao criticar seu
próprio conceito teológico. Portanto ele não estaria criticando à Deus, mas
um conceito “equivocado” sobre Deus. O exemplo clássico na Bíblia é o caso de
Jó, que depois de criticar seus conceitos teológicos, transforma a sua
experiência religiosa ao concluir que agora conhece à Deus de outra forma (que
não conhecia antes).
Se
esta transformação é para melhor ou pior não vem ao caso, mas destacam-se
algumas formas de “blasfemar contra Deus”: negando sua existência, criticando
um conceito estático, ou contrapondo-se e desenvolvendo novo(outro) conceito.
Negar
a existência de Deus é a teologia mais curta, encerra qualquer outra discussão.
Negar a existência de Deus também é, por
definição, uma teologia. Independente do fato de Deus existir ou não, a
verdade é que a teologia e “Deus” fazem parte da vida da humanidade, e negar
isso e seus efeitos é idiotice. É claro que esse fenômeno psicossocial não
precisa ser estudado necessariamente por teólogos, mas não podem ser
negligenciados por psicólogos, antropólogos e sociólogos (bem como pelas demais
ciências humanas).
A
simples crítica a um conceito predefinido demonstra o bitolamento a que está
submetido, condicionado a mente de certo indivíduo. Apropria-se de um conceito
estático, geralmente formulado por uma tradição religiosa forte, e opõe-se a
ele. Na verdade essa oposição, conforme Nietsche destaca, torna essa teologia
mais forte e digna de respeito. Aquele que ataca está na verdade pressupondo
que o conceito atacado é verdadeiro. Pressupõe-se
também que ao não se adequar às exigências religiosas de tal conceito, prefere
criticar esse “Deus”. Atitude improdutiva socialmente, mas que pode trazer
satisfação pessoal, espécie de desabafo.
O
terceiro grupo de “blasfemadores” são aqueles que não concordam ou não aceitam
que tal definição está correta ou completa. Estes “blasfemadores” são os que de fato desenvolvem a (nova) teologia.
Se revoltam contra opiniões (teologias) que não (co)respondem à sua realidade,
que não satisfazem seus anseios e buscam novas explicações, novas formulações
teológicas. Como exemplo dessas atitudes pode-se citar o Jesus descrito nos
evangelhos, que acrescentou novos conceitos e extinguiu outros usando
expressões do tipo: “ouviste o que foi dito (...) eu, porém, vos digo”. Neste
grupo encontram-se aqueles que ousaram criar novas teologias (teologia da
libertação, da prosperidade, etc.) e que acharam aceitação popular por
atenderem aos anseios de seus contemporâneos.
Conclusão:
Qual seria a real tarefa do teólogo
além de tentar sanar sua própria necessidade de dar sentido (explicação) à sua
vida? Talvez seja acalmar os corações com uma
teologia que atenda às necessidades de seus contemporâneos e desenvolver um discurso sobre Deus que de
fato faça sentido e traga respostas sobrenaturais a fenômenos naturais ainda
não explicados. Se for para criar uma ficção, então que ela seja útil.
Que hajam teólogos ousados, que
consigam pensar por si mesmos, e não apenas repetir velhas “verdades”! A dúvida
é o primeiro passo em busca da verdade, mas no fim, mesmo que a verdade mude, o
que realmente importa é que sejamos (bem) sucedidos! Precisamos de mais
“blasfemadores”!
Se você está discordando deste
artigo... Parabéns! Já é um bom começo!
[1]
Este artigo aborda basicamente a teologia do ponto de vista judaico-cristão.
Não se pode, evidentemente, anular as influências de outros escritos e
religiões (sincretismo), mas não cabe ao escopo deste artigo analisa-las.
Portanto estas influências foram desconsideradas propositalmente pela brevidade
do texto (reconhecendo, é claro, sua relevância), o que poderá ser feito em
outra ocasião.
[2]
Essa classificação é mais para efeito didático, pois dependem muito da tradição
religiosa de cada um. O único intuito aqui é definir que a maior parte do
material acadêmico na área teológica se restringe a Bíblia e alguns teólogos
expoentes, os quais considero mais influentes sobre os demais níveis, quero
dizer, o que importa para o círculo acadêmico na atualidade é a teologia
bíblica e suas principais interpretações. Esta classificação pode ser elaborada
à partir do público também, tendo “Deus” como autor primário, tem-se o público
secundário (profetas e apóstolos), terciário (escritores), seguidos dos
primeiros leitores e por fim, o público atual.
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